domingo, 2 de maio de 2010

Procedimentos

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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Tese apresentada pelo Professor Doutor João de Castro Nunes.




As tábuas afonsinas da concórdia



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Aplicando, na interpretação da mensagem transmitida pelos denominados Painéis de S. Vicente, a metodologia do “retour à la pierre”, em voga nos estudos epigráficos, vou prescindir de tudo quanto até este momento se disse ou escreveu sobre as emblemáticas tábuas atribuídas ao pintor régio Nuno Gonçalves, em pleno séc. XV, reinando D. Afonso V.

Farei de conta que, acabadas de descobrir, tenho o privilégio de, antes de mais ninguém, me defrontar com elas em primeira mão por forma a não ter, à partida, a mente inquinada por qualquer outra tomada de posição a condicionar a minha leitura alicerçada apenas no meu conhecimento da respectiva época, que sempre me fascinou o espírito a ponto de por vezes me considerar, eu próprio, um espectador dos acontecimentos que então se produziram.

Abro uma excepção, aliás desnecessária, para o critério defendido pelo Prof. V. Magalhães Godinho no sentido de se tornar imperioso contextualizar os painéis no acervo de factos que marcaram indelevelmente o reinado do Africano, na presunção de que obra de tal magnitude forçosamente terá de estar ligada a evento ou eventos de idêntica grandeza. Fazendo meu o seu critério, perfeitamente intuitivo, constato no entanto que o ilustre Professor não acertou no alvo, pois todas as suas sugestões (coroação, transmissão do poder, etc.) não se coadunam nem factualmente com a realidade histórica nem cenograficamente com a reconhecida espectacularidade das tábuas afonsinas. Não chegou a pôr o dedo na ferida.

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Longe de perfilhar a compleição moral e física atribuída por Oliveira Martins a D. Afonso V, prefiro vê-lo personificando, em elevado grau, o espírito cavaleiresco que então se respirava ainda intensamente em Portugal.

Órfão de pai aos seis anos de idade e logo separado da mãe regressada a Castela em circunstâncias trágicas que não vem ao caso referir, o rei-menino ficou sob a tutela do seu tio mais velho, o Infante D. Pedro, que logrou em cortes ser investido no ónus da Regência, nunca sendo por demais frisar que, precavendo-se de suspeições, foi a primeira pessoa a prestar-lhe vassalagem dando brado por ele em Santarém mal foi sabida a morte do monarca, ou seja, D. Duarte.

Criado sob a alçada do duque de Coimbra, que já então percorrera as “sete partidas” enchendo as cortes europeias do seu nome, o pequenino rei, além de passar a conviver de tenra idade com os mais altos expoentes da cavalaria portuguesa, que lhe iam incutindo no ânimo os seus nobres ideais, teve por companhia familiar, como se de irmãos se tratasse, os filhos do tutor, em número de seis, entre os quais a sua prima Isabel, com quem acabaria por casar.

Ambos adolescentes, ter-se-á gerado entre eles, sob os olhos da Duquesa, herdeira presuntiva do trono de Aragão-Urgel, uma afectuosa estima, assumida pelo Regente para sentar a filha primogénita no trono de Portugal.

E aqui nasce o primeiro agravo, irreparável, entre o Regente e o seu irmão bastardo, D. Afonso, que o mesmo desejava para a sua filha, como aliás era de há muito e por muitos tacitamente aceite, para não dizer que era matéria politicamente assente.

O certo, porém, é que o coração do jovem rei pendia para Isabel independentemente dos planos acarinhados pelo seu tutor, que entretanto lhe proporcionara esmerada educação nas letras humanísticas, que o próprio Regente eximiamente cultivava. O casamento foi inevitável por altura dos catorze anos de idade, ansiando o par pela união de facto, que o Regente ia retardando.

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Além de Isabel (1432-1455), futura rainha de Portugal, o duque de Coimbra tinha mais cinco filhos, com os quais Afonso V partilhou a sua infância, a saber, por ordem crescente de idades:

- D. Filipa, que se acolheu ao mosteiro de Odivelas, estando ainda viva quando D. Manuel iniciou o seu reinado, em 1495;

- D. Beatriz, que se consorciou, na corte da Borgonha,

sob os auspícios da respectiva duquesa, sua tia, com o famoso senhor de Ravenstein, o conde Adolfo de Clève e de la Mark, cavaleiro do Tosão de Ouro que se propunha tornar real a mítica saga do “Cavaleiro do Cisne”, que heraldicamente ostentava no seu “badge”;

- D. Jaime (1434-1459), que recebeu das mãos do Papa Pio II a dignidade cardinalícia e faleceu, na cidade de Florença, em odor de santidade;

D. João (1432-1456), o denominado D. João de Coimbra que, pelo seu casamento com Carlota de Lusignan, herdeira do trono de Chipre e do título real de Jerusalém, obteve a titulatura de príncipe de Antioquia;

- D. Pedro (1429-1466), investido por seu pai no alto cargo de condestável de Portugal.

Em hora má o Infante D. Pedro, na sua qualidade de Regente, deu ao primogénito a honra que, por ser neto de D. Nuno Álvares Pereira, reclamava com boa razão para seu filho o poderoso irmão bastardo, que não lhe sofreu a afronta, lavada em sangue na encarniçada refrega de Alfarrobeira.

Não vou evidentemente reavivar, que não seja o necessário, os vários lances que antecederam o encontro, às portas de Lisboa, das hostes do monarca e do seu tio e sogro, apostado em justificar-se da infâmia de traidor com que o acoimaram os seus detractores, mormente o despeitado conde de Ourém e seu pai, o bastardo infante D. Afonso, a quem o irmão benevolamente fizera duque de Bragança no propósito talvez de lhe conciliar o ânimo agastado.

Faço justiça ao jovem e enamorado Rei que tudo fez para evitar os extremos que se avizinhavam, aceitando mesmo que sua mulher e prima, a Rainha Isabel, se avistasse com seu pai em Coimbra para lhe acalmar o pundonor ferido. Tudo baldado!

Com seis mil homens e abundante carriagem, clamando justiça e, porventura, vingança, o Infante D. Pedro, sob cujo pendão se congregaram alguns dos seus antigos camaradas da saga da Hungria, à testa dos quais o intemerato conde de Avranches, põe-se a caminho da corte para de seguida, mudando de propósito, avançar para Lisboa, cuja população lhe fora em tempos particularmente afecta.

Na frente, com a vanguarda, vai o seu filho D. Jaime, enquanto o pai faz as últimas recomendações à esposa e filhas, que ficam rezando pelo bom sucesso da empresa. Só o filho mais velho, o condestável, se encontra ausente por obrigações irrecusáveis do seu alto cargo, que lhe confere o segundo posto na hierarquia da governação. Não teve parte no agravo ao soberano, junto de quem lhe competia estar em caso de eventual tomada de posição. Por fortuna sua… achava-se nas terras transtaganas. Teve a sorte do seu lado.

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A noite que precedeu a partida para a corte, bandeiras despregadas a clamar mais justiça que vingança, passou-a D. Pedro a velar armas na igreja de S. Tiago, à Praça Velha, em companhia do seu “irmão de cruz”, o destemido conde de Avranches, Álvaro Vasques de Almada, um dos raros cavaleiros da Garroteia de sangue não real em todo o continente europeu, cabendo-lhe o nº 162 na ordem de ingresso, não muito após os infantes D. Pedro e D. Henrique, netos do Duque de Lencastre, por inerência das suas progenituras, mal ao mundo vieram. Não foi o caso de D. Álvaro, que a ganhou nos campos de batalha sob o gonfalão dos príncipes britânicos: um cavaleiro de todo o tamanho, o qual, ao saber dos apuros em que se encontrava o seu indefectível amigo e companheiro de armas em terras do Danúbio, rumou a Coimbra com quantos cavaleiros conseguiu juntar a si. Gente da melhor.

Após a vigília, pela manhã, ouvidos em confissão e comungados, retirando-se à parte, redigiram sobre pergaminho a jura ritual dos “irmãos de armas”, que eles trouxeram das práticas em voga entre os magiares e povos circunvizinhos, a leste da Boémia, incluindo os sérvios, que porventura ainda hoje as observam: cortando os pulsos e juntando o sangue de ambos, a fazer de tinta, comprometeram-se, caso fosse esse o seu destino,, a sucumbirem juntos, como juntos sempre em vida se fizeram mútua companhia.

Onde cruzaram as águas do Mondego, não se sabe exactamente, mas supõe-se que por alturas de Tentúgal, onde o Infante tinha os seus paços, por ser domínio seu de preferência. Na frente, como já foi dito, ia D. Jaime, quinze anos em flor com mais vocação para santo que soldado, como veio mais tarde a comprovar-se: “Antes morrer do que pecar”, era o dizer da sua empresa a par da imaculada brancura do arminho que tomara para símbolo dos seus propósitos de vida. Atrás de si, bem municiado, vai o grosso das tropas, constituído fundamentalmente, para além dos cavaleiros, cerca de um milhar, pelos pescadores de Buarcos e suas vizinhanças, arraia-miúda dos vastos senhorios do Infante à roda de Coimbra.

Passado o Mondego, rumaram à Batalha, tocando de raspão nos domínios senhoriais do conde de Ourém, inimigo figadal do ex-Regente, em cujo encalço vai pôr gente armada a vigiar-lhe os movimentos e perscrutar-lhe os ânimos. De qualquer modo, recebe o Infante, da parte do prior do Mosteiro, o mais caloroso acolhimento, a ponto de lhe engrossar o exército com os lavrantes da pedra que então laboravam nas respectivas obras e que o prior forçadamente impele a acompanharem D. Pedro, com ele se comprometendo o bom do prior na arriscada empresa, raiando a rebeldia. Fosse o que Deus quisesse, dado o apreço em que a comunidade tinha o Infante, que sempre para com ela se mostrara generoso!

Seguindo avante, abeiraram-se de Alcobaça, em cujo Mosteiro acharam boa recepção, pois os seus monges deram por justa a reclamação do Infante, infamemente injuriado por culpas que não tinha, mas aleivosamente imaginadas e propaladas pelo seu poderoso irmão bastardo, o Duque de Bragança e seu odioso filho, o Conde de Ourém, por cujas terras circulavam em manifesto aparato de guerra. Como, aliás, não haveria a comunidade cisterciense de se sentir congratulada com a presença de tão culta personagem como era o Infante das “sete partidas”, se tinham em comum o gosto pelas letras clássicas que entre si partilhavam com deleitoso aprazimento e singular sucesso, tendo-se D. Pedro dado ao luxo de verter para vernáculo certos textos da jurisprudência ciceroniana e das sentenças morais e filosóficas de Séneca, que manuscritamente andariam na mão dos frades, largamente beneficiados pelo Infante durante a sua longa e frutuosa regência.

As contrariedades começam a surgir em Rio Maior, onde o Infante toma conselho e, perante novas que lhe são adversas quanto às intenções do seu real sobrinho e genro, decide não prosseguir em direcção a Santarém, onde a corte poisa, mas ir “contra Lisboa”, onde faz tenção de chegar antes de El-Rei e onde julga ter por si a terra que lhe foi berço. Pura ilusão! Tirando o prior do Mosteiro de Odivelas, um crúzio da sua confiança e por si tutelado, Lisboa está virada contra si.

De Rio Maior a Lisboa foi tormentoso o percurso. Há gente que, ciente dos riscos, vai ficando pelo caminho, desertando. E, por outro lado, há batedores do exército real que, a cavalo, provocam de longe o Duque de Coimbra, cobrindo-o de insultos e doestos que profundamente o magoam, partindo em sua perseguição o Conde de Avranches que consegue deitar a mão a um punhado deles, cerca de trinta, os quais, consoante a sua categoria social, sofrem pena capital por enforcamento ou degolação. Perto de Alverca, às portas de Lisboa, já só leva mil e quinhentos homens. Aproxima-se o fim.

Nesta localidade, em terreno sobranceiro, trava-lhe o avanço o numeroso exército real, cerca de trinta mil homens, entre os quais o contingente algarvio do Infante D. Henrique que acorreu ao chamamento do monarca com onze mil lanças. Uma força perfeitamente dissuasora!

Entre as forças de ambos interpõe-se a ribeira de Alfarrobeira, que vai dar nome ao trágico desenlace da tresloucada investida do Duque de Coimbra, a quem D. Afonso V, perante a acusação de traidor, deixara apenas três saídas: o desterrro, a prisão perpétua ou o esquartejamento, ao que ele ripostara preferir acabar “inteiro, não partido”. E assim foi.

Tomando a iniciativa das hostilidades, desguarnecido de armadura, mandou lançar uma bombarda, que foi cair na tenda real, dando início à refrega. Uma seta, certeiramente apontada ao coração do Infante, pôs-lhe termo à vida, como seria seu desejo naquela conjuntura. Sabedor do caso, o seu fiel “irmão de cruz” recolhe-se à sua tenda de campanha, onde biblicamente pede vinho e pão para se retemperar e, refeito, vai postar-se junto ao cadáver do seu companheiro de mil aventuras pelos confins da Europa, deixando-se matar após, a golpes de espada, tirar a vida à chusma dos vilões que ousaram defrontá-lo. Que linda maneira de morrer para um cavaleiro da Jarreteira!

Insepulto, permaneceu o Infante durante três dias no campo de batalha, findos os quais foi levado em padiola para a capela da localidade, onde ficou até ser levado para o castelo de Abrantes, a cujo Conde foi confiada a sua guarda, não fosse a sua irmã, a Duquesa da Borgonha, disputar-lhe o corpo, para lhe dar condigna sepultura. O filho, D. Jaime, teve o pescoço aparelhado para a degola, que não se efectuou, sendo-lhe comutada a pena pelo encarceramento, que durou cerca de um ano, após o qual se desterrou sob os auspícios da sua poderosa tia, que de honra em honra o vai levar ao cardinalato, não mais voltando a Portugal. Quem não morreu em combate ou sob o cutelo do carrasco, tratou de se escapar, nacionais ou estrangeiros, que não poucos eram, aqueles sobretudo que partilharam com o markgraf de Treviso os seus desvairos cavaleirescos ao serviço do Imperador Segismundo em terras húngaras. Baquero Moreno registou-lhes as identidades, bem como dos nacionais, que, dando o fora, se fizeram vassalos de outros soberanos. Que pobre ficou o reino de Portugal!

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Depois… foram as lamentações da filha do Regente, mulher e prima de El-Rei, a Rainha D. Isabel, que não se conformava com o destino sofrido pelo pai, que não tivera ensejo de se limpar das calúnias maldosamente levantadas pela estirpe dos Braganças. Que lhe perdoasse, que lhe reabilitasse a memória, que por amor de si não lhe agravasse a humilhação. Entre as súplicas da soberana e as insistentes diatribes dos seus detractores, o jovem Rei sentia-se aturdido. De 1449 a 1455, passaram-se seis anos nesta hesitação, não obstante as contínuas diligências da corte da Borgonha por seus embaixadores, sem qualquer sucesso. Os Braganças estavam sempre no caminho, soprando aos ouvidos do monarca, por natureza generoso e muito enamorado da sua prima e consorte, que entretanto, dando-lhe um filho varão, o futuro e tigrino D. João II, morre imprevistamente de um “fluxo sanguíneo”, deixando o marido inconsolável e sobretudo pesaroso de nunca lhe ouvir os rogos a favor do pai.

E aqui começa a história dos perdões! Fazendo-se forte a despeito da nefasta influência sobre ele exercida pela camarilha dos Braganças, estende o indulto a todos quantos militarmente se envolveram com o Infante no seu desforço contra o soberano, a começar pelos mesteirais do Mosteiro da Batalha, que lho solicitaram alegando a sua forçada participação a mando do prior, havendo-os, na sua maioria, que pelo caminho foram desertando sem passar além de Rio Maior, onde os restantes se deram conta dos maus propósitos do sogro e tio de El-Rei optando pela marcha sobre Lisboa: colectivamente perdoados, sem grande constrangimento.

Seguidamente os pescadores de Buarcos, o grosso da mesnada, que afincadamente se mantiveram nos seus postos por lealdade para com o detentor do poder senhorial nas terras que habitavam, devendo-lhe inteira vassalagem. Houve devassa. A custo foi-lhes alargado o perdão, sem que, de quando em quando, não viesse à tona o ressentido agastamento do monarca, servindo-se deles, prioritariamente, sempre que necessidade houvesse de mão de obra em regime de trabalhos forçados, como a reparação de fortalezas ou o transporte de vitualhas para as praças africanas. Bem o pagaram!

Por fim, homem a homem, viritim, os membros da nobreza, os cavaleiros, que deram voz pelo insubordinado Duque de Coimbra e presuntivo herdeiro da coroa de Aragão pela linhagem da consorte: “Eu não sou vosso vassalo!”. Houve denegações por indesculpáveis agravantes. A esses, não! De uns e outros se ocupou, nas suas exaustivas investigações, o Prof. Baquero Moreno, para cujas obras remeto os curiosos destas minudências. A quem sobejar tempo, pode recorrer directamente à correspondente documentação tratada e arquivada nos gavetões da Torre do Tombo, pois de tudo se lavrou registo.

Quanto ao Infante, que lhe serviu de tutor durante a menoridade, sobremaneira o exaltou, mandando-o trasladar do castelo de Abrantes para o convento dos Lóios, em Lisboa, onde em magnífico e rendilhado túmulo, devidamente armoriado, repousou até à sua definitiva remoção para a capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha, a par dos seus progenitores. Ele próprio, o Rei, na companhia dos grandes do reino, compareceu a recebê-lo, assim dando satisfação aos rogos da sua falecida mulher e prima, tardiamente embora. Só faltaram os Braganças, porque “ódio velho não cansa”. Quem sabe se não teve começo aqui o seu posterior apagamento nas boas graças do soberano, cujo filho, vingando o infortúnio do seu avô materno, os vai implacavelmente estrangalhar!

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Foi o prelúdio de um reencontro do monarca com a totalidade dos seus vassalos dentro e fora das fronteiras do reino, a cujos senhorios foram confiadamente retornado os respectivos donatários, alguns dos quais acrescentados nos seus títulos e bens, como foi o caso do condestável D. Pedro, regressado de Castela com um punhado de cavaleiros aragoneses que irão marcar presença sob os muros das praças africanas. Palavra de rei é palavra de rei, o que não tira que, sob juramento, exarada seja por escrito perante idóneas testemunhas, segundo os rituais tabeliónicos do tempo. E para que, perante a nação, de novo congraçada, não restasse qualquer dúvida sobre as suas rectas intenções, mandou que em vistosos painéis tudo ficasse patente, entrando pelos olhos, sem precisão de cabalísticas ou esotéricas congeminações, impróprias de uma comunidade pouco mais do que iletrada. Ver para crer!

Eis ali, num dos painéis centrais, em torno do bem-aventurado cardeal de Santo Eustáquio, de palaciano ou cerimonioso gorro na cabeça e paramentado de diácono, como eclesiasticamente lhe competia por não ter chegado ao sacerdócio, eis ali, repito, a família real em perfeita união de sentimentos, vivos e mortos, em calculada e virtual retrospectiva, como sempre foi preocupação dominante dos príncipes de Avis na feliz constatação do Prof. Adão da Fonseca debruçado sobre os textos literários coevos dos eventos em apreço: o Rei e a Rainha, sua falecida esposa e prima, o Infante D. Pedro, trajando à borgonhesa, como só ele ousaria, a par de sua mulher, a Duquesa de Coimbra, e sob cuja tutoria, fazendo-lhe de pais, o Rei viveu durante a sua prematura orfandade, aos seis anos de idade, e finalmente o condestável, de nome Pedro como o pai, a cuja sombra parece estar postado. Como são parecidos os dois irmãos, Pedro e Jaime, com escassos anos de diferença etária!

Nos laterais, os perdoados, avultando, além dos frades, implicados na rebelião, homens de Deus, a quem nada se nega e menos se castiga, o painel dos cavaleiros, entre os quais identifico, sem sombra de dúvida, o destemido Álvaro Vaz de Almada, deixando ver parte da armadura e ostentando o cinturão peculiar da Ordem da Jarreteira, e bem assim, o esforçado Diogo de Azambuja, cujo carão fala por si, conforme se observa na sua estátua jacente em Montemor-o-Velho, na igreja de Nossa Senhora dos Anjos. Será o senhor de S. Marcos, nas imediações de Tentúgal, Aires Gomes da Silva, o pundonoroso regedor das justiças, a terceira personagem que, para meu gosto, haveria de ser o esforçado Álvaro Gonçalves de Ataíde, caso eu não soubesse que, na contenda, ele se colocou sob o pendão real na mira, porventura, de alta recompensa em detrimento dos sacros laços de camaradagem que o prendiam ao Infante, que ele precedeu no serviço a Segismundo?... Deixo em suspenso. Mas, para maior certeza de que se trata efectivamente do grupo de cavaleiros da chamada saga da Hungria, lá está, por trás de todos, a simbólica figura do capacete cónico que tanto tem intrigado os críticos dos painéis, aventando cada qual a sua hipótese, mas inclinados, na sua maioria, para o modelo mouro, como se de mouro ou sarraceno tivesse coisa alguma. Quem não vê nele o capacete pontiagudo em uso, desde tempos imemoriais, entre os combatentes do baixo-Danúbio, no leste europeu, como figura em tantíssimas estampas alusivas às refregas entre turcos e vassalos dos imperiais senhores do sacro império, com Segismundo à cabeça?... Inquestionável, como inquestionável é também aquela farta cabeleira desusada por estas bandas nossas da cristandade! Não insisto… perante a evidência.

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E falemos agora do quarto painel lateral, no extremo direito das famigeradas tábuas afonsinas destinadas a consagrar o espírito de concórdia que, em vésperas das suas campanhas africanas, o cavaleiroso Rei pretende ver instalado entre os seus vassalos na totalidade, pois de todos vai necessitar sem distinção de categoria social ou poder de lança, como foi o caso do bispo de Coimbra que, por extraordinários actos de bravura na toma de Arzila, elevou à dignidade de conde Arganil, aqui perto de nós. Era um mãos largas, o Africano!

Ao centro, trajando de negro, como ao cargo competia, de pé e ostentando o cartulário ou livro dos perdões, concedidos ou denegados, vê-se o notário ou tabelião do reino, judeu seguramente conforme era usual em tais funções e bem o inculca a estrela das seis pontas sobre a vestimenta. Aberto de par em par e simuladamente escrito em garatujas, nele não se identifica o nome de qualquer para evitar melindres de inúteis ou descabidas precedências. Aos interessados, de presença ou por interposta pessoa, em caso de forçada ausência além-fronteiras, caberia a respectiva consulta, preto no branco. Suficiente?... E se, acaso, não passasse toda aquela encenação de astuciosa artimanha para o monarca haver à mão os foragidos em cortes estrangeiras e por elas graciosamente acolhidos?!... E se, mesmo empenhando a sua palavra por escrito, o Rei mudasse de humores e, dando o dito por não dito, fizesse letra morta dos textos assinados, dada a sua conhecida volubilidade só comparável ao seu carácter proverbialmente generoso?!...

Mas não. Sua majestade, jurando sobre as santas relíquias, ali patentes em soleníssima postura, comprometeu-se perante Deus a manter firme a sua resolução sem ponta de má-fé nem risco de retorno. E assim se explica, de joelhos, aquela personagem, litúrgica e solenemente vestida de vermelho, expondo em mãos aquele pedaço de corpo humano sobre o qual se têm freneticamente debruçado e encarniçadamente debatido os panegiristas do carácter devoto dos painéis, tentando a sua presumível, mas improvável identificação hagiográfica, até porque carente de sentido: qualquer relíquia, desde que sagrada, surtiria o efeito pretendido! E, para remate, nem faltou a tradicional esmola dada aos mendigos em actos sociais gratulatórios, como o presente foi: o chamado bodo aos pobres, ainda hoje em dia observado, entre nós, em certas festividades de índole familiar, como bodas e baptizados, quando abundam os recursos ou a nobreza obriga. E deu-se até ao último ceitil ou pedaço de pão, como se depreende do vulgaríssimo caixote ao fundo, a “caja de caudales”, absolutamente esvaziado. Querem mais simples?

E que fazem todas aquelas criaturas alinhadas, em último plano, ao longo dos painéis? Que outra coisa podem ser senão as costumadas testemunhas, os testes, habituais, por imprescindíveis, em actos notariais do género? Onde já se viu o contrário, até nos dias de agora?

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Em tal conformidade, abeiramo-nos do quadro que justifica o título que dei à minha leitura das tábuas afonsinas que, longe de terem qualquer motivação devocionária ou religiosa, são manifestos de índole profana, ou seja, de inspiração política, tendo em vista a sua exposição nos aposentos reais ou quaisquer outros frequentados sítios da vida citadina, fazendo alarde, fora dos templos, da conciliação da grei em torno do seu Rei, assumidamente desagravado de ofensas que não houve senão na mente doentia de certos poderosos detractores sem lugar naquele memorável instrumento de reparação moral dos vencidos de Alfarrobeira, alguns dos quais reconhecidamente os melhores vassalos do seu reino.

Ei-los de novo ali reunidos, vencidos e vencedores, sob a vara de comando do bem-aventurado cardeal de Santo Eustáquio, a inocente vítima maior da temerária marcha do seu desafortunado pai sobre Lisboa, ei-los ali, em trajes palacianos de parada, os detentores dos altos postos de chefia militar, dispostos a dar ao soberano a ajuda do seu braço para as campanhas de África que obsessivamente estavam nos horizontes do monarca, que sempre se empenhou em fomentar entre os seus vassalos o espírito de harmoniosa convivência. Quem não recorda que foi ele que, tempos antes do desaguisado que levou ao drama de Alfarrobeira, subscreveu com seus tios desavindos a célebre carta que ele próprio denominou de concórdia, em nome da qual precisamente acabou por passar uma esponja sobre a tragédia que havia de ensombrar o seu reinado, pois se reacendeu, tempos depois, ante os muros de Tânger, na pessoa do condestável homónimo do seu tio e sogro, o futuro rei dos catalães?! Que sina a sua!

Não é estranho que, em obra de tanto esplendor e teatralidade cenográfica, apareça enrolada aos pés da personagem dominante do quadro, a dar nas vistas, uma simples corda, sobre a qual se têm tecido as mais absurdas e abstrusas conjecturas?... Não vou, por desnecessário, alongar-me sobre a matéria, a não ser para frisar que, em meu juízo ou perspectiva, nela reside, em primeira análise, o fio de Ariadne que nos introduz e conduz, de painel em painel, pela labiríntica tarefa da sua leitura, como se de uma legenda se tratasse. Em lugar privilegiado, centralizada, a corda constitui desde logo inequivocamente aquilo que, em heráldica, se costuma designar por símbolo falante. Que outra maneira haveria de pictograficamente representar a ideia em causa senão por algo que foneticamente apontasse na sua direcção? De corda a concórdia e desta àquela. a ponte é manifesta, tanto mais que, para os conhecimentos filológicos do tempo, o radical, mais que aos sentimentos do coração, se prenderia às ataduras da vontade, De resto, não é da minha lavra a invenção ou utilização deste vocábulo, pois foi o próprio Rei que, na carta de pazes entre os Duques desavindos, a teve na boca, então como agora, com maioria de razão, dado ser o abrangente resultado dos perdões que o Africano prodigalizou à generalidade dos seus contrários por amor da sua esposa e por imperativo da sua beligerância ultramarina e da sua reputação ante os seus pares de além-fronteiras. Quem havia de dizer que até a viúva do Infante, a Duquesa de Coimbra, tratada de “majestat” pelos catalães, haveria de ser contemplada com dadivosa e confortável tença vitalícia, sob o signo da CONCÓRDIA, inspiradora dos painéis! Tudo tão evidente aos olhos dos contemporâneos! E nossos porventura também.

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Alcançados os objectivos para que foram concebidos e magistralmente executados, havendo quem fora de fronteiras autorizadamente os apelidasse de “pórtico de glória” da pintura europeia proto-renascentista, é de perguntar qual o destino que aos painéis foi dado após os reinados de Afonso V e seu filho, o Príncipe Perfeito, sob cujo ceptro não mais haveria lugar a discordâncias. Passado o duro ofício de reinar a D. Manuel, Bragança de raiz mas assumido continuador da política dos seus antecessores em múltiplos aspectos, os painéis, perdendo razão de ser, teriam sido pura e simplesmente removidos para lugar discreto em regime de depósito de bens históricos da grei, que importava preservar e porventura esquecer perante a nova casta no poder, como quem guarda documentos de arquivo. Tratou-se de arrumá-los em lugar incerto, ao menos para nós. Fora de contexto, perdeu-se-lhes o rasto até que um dia, há pouco mais de cem anos, foram localizados nas instalações do Mosteiro de S. Vicente de Fora, na capital, em péssimo estado de conservação, mas não deteriorados, como teria acontecido se, porventura, se encontrassem na sé-catedral em devota exposição quando do terramoto de 1755, que tão profundamente a devastou. E começa, então, a saga da sua decifração, a que pretendo pôr termo com a minha visão pessoal e descomprometida dos acontecimentos que marcaram, mais que outros quaisquer, o reinado de D. Afonso V. E termino repetindo, como um eco, as palavras que, ouvindo da minha boca esta sucinta explanação, o general e historiador Themudo Barata proferiu entre perplexo e rendido às evidências: “Como é que nunca ninguém viu isto?”.





JOÃO DE CASTRO NUNES